CRISES NO
CASAMENTO POR DESLEIXO, ROTINA E DETERIORAÇÃO DA VIDA CONJUGAL
Rafael Llano
Cifuentes
O matrimônio
deteriora-se quando não se renova, quando se permite que entre nos trilhos da
rotina.
Há uma
rotina indispensável e benéfica que nos permite cumprir com regularidade,
constância e pontualidade os nossos deveres espirituais, familiares e
profissionais. Esta rotina constrói uma estrutura de vida sólida, cria um
comportamento homogêneo que nos ajuda a libertar-nos da espontaneidade
meramente anárquica, dos caprichos emocionais dissolventes e perniciosos.
Mas existe
uma outra rotina, a rotina mortífera, que deve ser afastada como a peste. É uma
rotina que, pouco a pouco, como uma sanguessuga, vai dessangrando o con vívio
conjugal. Todos os dias um pouco. Imperceptivelmente, endurece-nos, converte os
nossos atos em algo mecânico, torna-nos autômatos, robôs sem vida, extingue o
calor e a alegria de viver e de amar. Esta rotina provoca um desgaste
progressivo na vida familiar, uma perda de energias, uma espécie de anemia
vital que torna a existência cinzenta, anódina, incolor.
Lembro-me
daquela música dos anos 60 cantada por Ronnie Von: "A mesma praça, os
mesmos bancos, as mesmas flores, o mesmo jardim, tudo é igual, assim tão tris
te..." Alguns poderiam queixar-se, de forma semelhante: "A mesma
esposa, a mesma família, o mesmo trabalho, a mesma paisagem, a mesma
"droga de sempre"... É tudo tão triste e cansativo..."
Talvez se
consiga continuar caminhando mesmo assim. Externamente, o casal vai mantendo as
aparências, como um móvel visitado pelo cupim, corroído por dentro. Por fora,
nada se percebe, mas de repente tudo desmorona, os cenários desabam, as
fachadas caem e aparece um panorama desolador: "Meu Deus, toda a minha
vida, daqui para a frente, vai ser igual"... E entra-se numa espécie de
letargia mortífera. Muitas infelicidades, muitas crises conjugais, muitas
deserções são provocadas por esse fenômeno.
Quando na
nossa vida diária não "contemplamos o amor", não renovamos o amor,
caímos nessa rotina que mata. Os mesmos bancos, as mesmas flores, o mesmo
jardim, a pesada monotonia do que é sempre igual, deve-se - como dizia ainda a
canção - a que "não tenho você perto de mim". Quando o amor está
ausente, tudo é tão triste...!
Você talvez
já tenha passado por uma experiência parecida. Estava trabalhando numa tarefa
extremamente enfadonha, repetitiva, rotineira... e pensava: "Tomara que
termine logo"... De repente, alguém que você ama muito pôs-se ao seu lado
e disse-lhe: "Deixe que lhe dê uma mão. Ao menos, deixe-me ficar com você
até terminar"... E, naquele momento, você murmurou: "Tomara que não
termine nunca!" As mesmas circunstâncias mudam substancialmente quando o
amor está presente. A mesma família, a mesma esposa..., mas tudo é diferente
porque se soube remoçar o amor: as pupilas, dilatadas pelo amor de Deus, pelo
amor ao cônjuge e aos filhos, conseguem enxergar uma nova família, uma nova
esposa, um novo trabalho todos os dias.
O poeta
francês Lamartine passava horas a fio olhando sempre para o mesmo mar. Alguém
lhe perguntou certa vez: "Mas não se cansa de olhar sempre a mesma
vista?" - "Não - respondeu -; por que será que todos vêem o que eu
vejo e ninguém enxerga o que eu enxergo?" A sua alma de poeta permitia-lhe
ver realidades diferentes nas paisagens de sempre. A alma contemplativa que o
amor nos confere dá-nos também essa acuidade espiritual que nos permite ver
mundos novos por trás das aparências sempre iguais do monótono viver diário. Em
contrapartida, quando não existe uma viva preocupação por renovar o amor como o
fator mais importante da vida conjugal e familiar, aparecem esses matrimônios
corroídos pela monotonia.
Lembro-me do
Gilberto e da Cida. Acompanhei as suas vidas desde o início do casamento.
Amavam-se muito. Gilberto, jovem advogado que achava lindíssima a sua
"Cidinha", trabalhou muito e prosperou. Aconselhava-se
espiritualmente comigo.
Depois de
catorze anos de casamento, Gilberto disse-me um dia:
- O meu
casamento entrou em crise. Morro de tédio e monotonia. Todos os dias, quando me
levanto, vejo a Cida despenteada, sem se arrumar, horrorosa, com os pés
enfiados nuns chinelos horríveis que não troca faz quinze anos, arrastando-se
pelos corredores, cansada... Abro a porta do quarto e encontro as crianças, que
já são adolescentes, discutindo, brigando... A minha casa parece um
zoológico...
"Depois,
chego ao escritório e encontro lá a Mônica, uma estagiária. O panorama muda da
água para o vinho. Ela é encantadora. Acho que tem uma queda por mim...
Aproxima-se, charmosa...: "O senhor parece cansado...; não quer que lhe
traga uma aspirina com uma coca-cola?" E afasta-se com um andar cadenciado
que me arrebata... Estou perdendo a cabeça... Em casa, sinto-me acorrentado...
Tenho necessidade de libertar-me. Por que condenar-me à prisão de um amor que
já morreu? O contraste entre a Mônica e a Cidinha é muito forte... Não sei,
não... O que me aconselha?...
- Eu lhe
daria quatro conselhos - respondi -, mas preciso antes que você me diga se está
disposto a cumpri-los.
- Sempre
aceitei e pratiquei os seus conselhos, e não é agora, neste momento crítico,
que deixarei de segui-los! - O primeiro - prossegui -, é que mande embora a
estagiária...
- Não! Isso
não!!
- Prometeu
seguir os meus conselhos... Ao menos, dê-lhe trinta dias de férias remuneradas...
- Isso sim,
posso fazer...
- Em segundo
lugar - acrescentei -, leve o seu filho mais velho à igreja em que você se
casou, e, diante do altar e do sacrário onde você prometeu à Cida que a amaria
até que a morte os separasse, diga ao seu filho que pensa trocar a mãe dele
pela Mônica... Já imaginou o que lhe responderá esse seu filho, que lhe parece
um "bicho do zoológico", mas que ama o pai mais do que tudo no mundo?
Quer que lhe diga?: "Pai, esperaria qualquer coisa de você, menos que
fizesse uma cachorrada dessas com a minha mãe"...
- O senhor
está sendo duro demais - retrucou o meu amigo.
- Não. Pense
que estou apenas adiantando o que, muito provavelmente, lhe dirá o seu filho...
"Terceiro
conselho: olhe a Cida com outros olhos, como a mãe dos seus filhos, como aquela
que perdeu a juventude e a beleza ao seu lado, que já fez o papel de enfermei
ra - quantos remédios ela já não lhe levou à cama! -, mãe e companheira
amorosa; e, especialmente, recomendo que aprofunde mais na sua vida espiritual,
que está muito desleixada: daí tirará forças. E, por último, antes de ter essa
conversa com o seu filho, espere que eu fale com a Cida... Diga-lhe que marque
uma hora comigo...
Veio a Cida,
toda inocente, desarrumada, despenteada:
- Cida, por
favor, arrume a "fachada" e... compre outros chinelos!
A Cida era
inteligente. Foi ao cabeleireiro, comprou roupas novas, uns chinelos novos,
tornou-se mais carinhosa com o Gilberto, preparou as "comidinhas" de
que ele gostava... e terminou "reconquistando" o marido.
Quando a
Mônica voltou de férias, o Gilberto dispensou-a sumariamente.
Hoje,
Gilberto e Cida são muitos felizes. O filho mais velho formou-se em Engenharia.
Nem suspeita de nada. Continua adorando o pai, como os demais irmãos. Mui tas
vezes penso o que teria acontecido a essa família se o Gilberto se tivesse
deixado enfeitiçar pelo canto da sereia.
É evidente
que nem o marido nem a mulher devem permitir esse desgaste. A monotonia densa,
pesada, que torna a vida uniforme, insípida, tediosa, insustentável, venenosa,
reclama clamorosamente uma renovação.
Outra
recordação que talvez seja útil. Um amigo veio-me fazer uma confidência sobre
as "amarguras" do seu casamento:
- A
Elizabeth está esquisita, anda queíxando-se continuamente de stress; sente-se abafada
dentro de casa; diz que não tem horizontes...
- Mas ela
era alegre, animada, esportista... Por que você não tem a coragem de
perguntar-lhe à queima-roupa: "Que você gostaria de fazer um dia qualquer
deste mês? Diga, por favor, rapidinho"...
Ele fez a
experiência e ficou "bobo":
- Ela
começou a pular e rir como uma criança... "Você fala a sério? Eu quero ir
à praia de Búzios e comer uma suculenta peixada depois daquele banho de mar, no
mes mo quiosque onde nós íamos namorar..." Quando eu concordei, rindo, foi
como se o véu da desmotivação que cobria o seu rosto caísse por terra num
instante. Fomos à praia, almoçamos como quando éramos namorados... e regamos a
"peixada" com uma cerveja geladinha... O senhor quer saber de uma
coisa? Ela não arreda pé ... Cada trinta dias me pergunta: "Vamos a
Búzios?" Faz dois meses que não discutimos. Ela está muito bem disposta...
parece que o cansaço acabou...
Renovar-se
ou morrer, dizem os franceses; é preciso superar essa seqüência cinzenta de
dias e semanas; é mister uma renovação de idéias, projetos e programas de vida,
introduzindo em cada semana uma pequena novidade, um passeio, um jantar fora de
casa, um "dia azul"... e a cada biênio um novo roteiro de férias, uma
pequena reforma na casa; e, para as mulheres especialmente, uma renovação da
fachada, do visual, do penteado..., esforçando-se por estar sempre atraentes,
dentro de casa ainda mais do que fora, a fim de conquistar e reconquistar o seu
marido todos os dias.
Mas o que é
mesmo absolutamente necessário é o fortalecimento espiritual. Como já dissemos,
é do fundo da alma que brotam, como de uma fonte, novas perspectivas de vida. O
Espírito Santo permite, como diz a Sagrada Escritura, que a nossa juventude se
renove corno a da águia! (SI 102, 5). Todo o amor genuíno, seja qual for a sua
natureza, tem em Deus o seu fulcro e o seu término. Por isso, o problema da
monotonia, do cansaço, do desgaste do amor conjugal encontra no amor de Deus o
estopim da sua renovação: é o amor a Deus, vivido no meio dos afazeres diários,
que dilata as nossas pupilas para que possamos, como Lamartine, encontrar no
mar da família perspectivas novas, e no rosto do outro cônjuge os valores
esquecidos.
Um caso que
ilustra esta verdade. O marido - que já tinha passado dos sessenta, e ela idem
- vinha-me dizendo havia anos que não suportava mais a mulher, que con viviam,
mas trocavam poucas palavras, e que iam à Missa e faziam as suas orações cada
um por sua conta. Mas ele sofria com esse seu modo de ser, pouco flexível em
questões domésticas, e lutava por vencer-se. Um dia, porém, chegou com um largo
sorriso: "Sabe? Desde há um mês, voltamos a rezar juntos, minha mulher e
eu". Parece uma bobagem, mas esse gesto comum - rezar juntos - derrubou as
barreiras. No início custou, mas pouco a pouco converteu-se no sinal mais claro
e mais seguro da reversão de uma crise matrimonial que se vinha arrastando,
surda e tristonha, havia décadas.
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